Olá, caríssimos! De volta à mesa de debate, venho com uma pergunta que, esporadicamente, vem à tona gerando uma série de discussões. Normalmente, os conceitos são passados de forma errada, a informação é manipulada pela mídia e a maioria absoluta da população aceita de bom grado cada palavra sem fundamento. Um bom exemplo é a recente reportagem exibida na rede record de televisão no programa "domingo espetacular", cujo link para o vídeo no youtube segue abaixo:
http://www.youtube.com/watch?v=wqbfADtkVAc
Como é de praxe, a reportagem exibe uma série de informações sem fundamento algum, consultando "especialistas", no mínimo, questionáveis, e pessoas com intenções suspeitas.
É interessante observar, por exemplo, o jovem Márcio Vinícius falando sobre a violência excessiva dos jogos do "amigo", o atirador do Realengo. Não tanto pelo que o jovem fala, mas porque o papel de parede do computador do qual ele faz uso é um personagem do jogo "Mortal Kombat", que, ao meu ver, é, simplesmente, o jogo mais violento de toda a história dos games. Seguindo a lógica da reportagem e do próprio jovem, seria interessante que as pessoas tomassem alguns cuidados perante o indivíduo, ou pode ser que ele resolva arrancar corações com as próprias mãos por aí.
A "especialista" Soraya Hissa de Carvalho, fala com convicção a respeito do aumento do déficit de atenção causado por estes jogos em jovens. Afinal, especialista em que?! Faço a pergunta porque veremos algumas evidências de que isto nada mais é que falácia, o que deveria ser evitado por uma pessoa com o mínimo de ética.
Não menos interessante é observar a mãe Solange Martins Coelho falar sobre a mudança no comportamento do filho, a qual ela observou à partir dos 12 anos de idade, o que, segundo ela, seria causado pelo uso destes jogos. Coincidentemente ou não, esta é uma fase denominada puberdade, na qual pessoas do mundo inteiro desde o estabelecimento da civilização, e, provavelmente, antes, apresentam mudanças de comportamento envolvendo vários fatores, inclusive, agressividade.
Como a maioria das reportagens básicas da tv aberta brasileira, esta não deixou de citar fatos correlatos aos casos e ignorá-los posteriormente na conclusão, influenciando os mais parvos. Os repórteres citam o diagnóstico de distúrbios psiquiátricos em ambos os casos mostrados, mas se esquecem deste fato na hora de afirmar com tenacidade que jogos violentos induzem jovens a cometer atitudes semelhantes.
Este conjunto de afirmações se depara com uma muralha de pessoas que seguem a ordem social comum a despeito do uso de jogos de tal natureza. Eu mesmo sou um exemplo disto. Já joguei todos os games apresentados e vários outros. Mesmo assim, não fui influenciado negativamente por eles e conheço toda uma comunidade que compartilha da mesma lógica.
Será que, mesmo com a baixíssima qualidade da reportagem e a atitude obviamente tendenciosa dos repórteres, a matéria exibida pela rede Record apresenta alguma verdade?! O que os jogos fazem em termos de neurociência comportamental? Pois bem, vamos às evidências científicas.
O título deste post é uma frase de camiseta do site www.linuxmall.com.br que achei muito interessante.
Um dos jogos mais criticados em termos do nível de violência, além de ser um dos pioneiros no estilo, é Doom, que foi tema de debates acalorados, principalmente, no início da década de 90. Vários foram os que tentaram censurar o jogo, afirmando que seu uso incitaria à violência. Entretanto, Karen Sternheimer, em 2007, observou que, após a criação do jogo, o índice de homicídio entre os jovens caiu em 77%, um contraponto interessante às afirmações mencionadas. Mas qual a explicação para a crucificação dos games violentos? A autora sugere que esta seria uma forma encontrada pela sociedade para explicar o aumento (ou pelo menos o aumento dos casos reportados) do número de tentativas de homicídios feitas pelos americanos brancos de classe média, que era o que se discutia na época. A sociedade desesperada clama por culpados deste aumento, sendo ele apenas aparente ou não. Ao longo do último século, pessoas culparam os carros, rádios, filmes, música (especialmente o rock) e revistas em quadrinhos (acrescento aí, por conhecimento próprio, o RPG, que é um jogo do qual também faço uso). Segundo a autora, políticos têm usado estes argumentos em campanhas que eles denominam como batalhas entre o "bem e o mal". Mas não seria isto apenas a criação de bodes expiatórios para a má administração pública no que tange à segurança?!
A autora cita ainda uma série de reportagens em jornais de prestígio, como o New York Times, afirmando coisas semelhantes ao que foi dito na reportagem da Record, embora isto tenha sido mais comum no fim da década de 90.
Não insistirei em citar os jornais com suas informações, pois, pela minha revisão, a afirmação segue sempre a mesma lógica: jogos do tipo mencionado (entre vários outros) foram encontrados entre os pertences dos potenciais homicidas. Mas não podemos deixar de observar que os mesmos jogos são material permanente nas prateleiras de diversas pessoas que não seguem o mesmo padrão sociopata. Portanto, este fator não consiste uma evidência. Tendo em foco apenas os games, as reportagens deixam de citar todo o background social dos atiradores, segundo a autora. É como pesquisar um acontecimento regido por uma série de variáveis, mas levar em consideração apenas a de interesse pessoal. Sendo assim, não podemos negar que alguns jornais têm deixado a ética de lado.
A maior dificuldade em estudar os efeitos dos games no comportamento está em isolar esta variável. O aumento da disponibilidade destes jogos é um reflexo da evolução tecnológica sofrida pela sociedade, que não deixa de ser acompanhada por diversas alterações de cunho distinto no modo de vida das pessoas. A estatística pode mostrar tantos resultados quanto forem os ângulos de observação e o englobamento de todas as variáveis parece ser impossível.
Os métodos mais comumente utilizados na experimentação são aqueles criados pela psicologia. Esta área tem como meio comum de pesquisa o questionário, para o qual as respostas, obviamente, dependem de cada indivíduo e, consequentemente, da experiência de vida anterior e das característica intrínsecas de cada um. Muitos pesquisadores questionam a eficácia destes métodos devido à subjetividade gerada pelas variações mencionadas. Mas os métodos continuam a ser utilizados.
Carnagey & Anderson, em 2005, chegaram à conclusão de que os games em que há recompensa por atitudes violentas aumentam as emoções hostis, o modo agressivo de pensar e o comportamento agressivo. No mesmo trabalho, os autores afirmam que games que apresentam violência, mas há punição quando da utilização desta, aumentam as emoções hostis, mas não os demais parâmetros analisados. Já os jogos que não apresentam violência alguma parecem não afetar qualquer dos parâmetros analisados. O método utilizado foi bastante interessante. Os autores criaram duas novas versões do game "Carmageddon 2". Na versão original há recompensa aos atos violentos. Atropelar pedestres, roubar carros e matar pessoas aumentam a pontuação do jogador. Uma versão em que há diminuição dos pontos adquiridos foi criada para analisar o efeito da punição aos atos violentos e uma outra versão foi feita, na qual o jogador não pode cometer estes atos violentos. A despeito do método interessante, a análise foi feita através de um questionário conhecido como "state hostility scale", onde a pessoa objeto de estudo faz uma auto-avaliação completando de 1 a 5 (sendo 1 = discordo plenamente; e 5 = concordo plenamente) uma série de emoções ligadas à agressividade. A média destes valores foi obtida pelos autores e comparada através de análise de variância, que por si só, já pode não ser o método estatístico mais interessante para esta comparação. Além disto, os autores analisaram apenas o efeito imediato após o jogo, o que não reflete necessariamente o comportamento do indivíduo em sociedade.
Alguns experimentos realizados com ressonância magnética nuclear funcional também foram realizados mostrando que o sistema límbico é, significativamente, mais vezes ativado durante a utilização de um jogo violento que durante o uso de um jogo não violento (Weber et al., 2006; vários são citados ao longo do artigo). Embora as conclusões apontam para uma correlação é importante lembrar que o sistema límbico está ligado às emoções de maneira geral, não apenas à agressividade. Um jogo que apresentam desafios, mas não emoções, há de ativar menos esta região mesmo não sendo necessariamente ligado à violência. As conclusões são, portanto, tendenciosas.
Ao contrário do que afirma a "especialista" na reportagem da rede Record, há evidências de que jogos deste tipo aumentam a capacidade cognitiva do usuário em diversos aspectos. Boot et al., em 2008, mostraram que pessoas submetidas a treinamento em Medal of honor: pacific assault, um jogo com cenas de violência, podem acompanhar objetos movimentando em maior velocidade que pessoas não submetidas ao treinamento. Da mesma forma, os jogadores detectam melhor as modificações feitas em objetos previamente expostos, demonstrando aumento da eficiência da memória de curto-prazo. Estas pessoas conseguem também de maneira mais eficiente trocar de uma tarefa qualquer para outra quando comparadas àquelas não treinadas. Outra característica interessante é que elas também podem detectar a forma correta de um objeto mentalmente girado mais eficientemente. Não há qualquer evidência que possa sugerir um déficit de atenção em jogadores de jogos violentos. Pelo contrário, o uso de jogos de ação, violentos ou não, tem sido sugerido como método de tratamento do déficit de atenção, sendo o que foi dito pela "especialista" em questão totalmente sem fundamento.
A pesquisa sobre os efeitos dos jogos no comportamento precisa melhorar muito para podermos realmente afirmar se a violência destes induz a agressividade ou não. As pesquisas que apontam esta indução são subjetivas e, na maioria, de péssima qualidade, de modo que não há como apontar efeitos negativos destes games com o conhecimento atual que temos. Efeitos positivos, por outro lado, ligados à cognição são muitos e solidamente observados em pesquisas de grande qualidade. Crucificar estes games é, no mínimo, imprudente.
Referências interessantes:
Sternheimer, K. 2007. Do Video Games kill? Contexts, Vol. 6, Number 1, pps 13-17. ISSN 1536-5042, electronic ISSN 1537-6052. American Sociological Association
Carnagey, N. L.; Anderson, C. A. 2005. The Effects of Reward and Punishment in Violent Video Games on Aggressive Affect, Cognition, and Behavior. Psychological Science. vol. 16, number 11.
Weber, R.; Ritterfeld, U.; Mathiak, K. 2006. Does Playing Violent Video Games Induce Aggression? Empirical Evidence of a Functional Magnetic Resonance Imaging Study. Media Psychology, vol. 8.
Boot, W. R.; Kramer, A. F.; Simons, D. J.; Fabiani, M.; Gratton, G. 2008. The effects of video game playing on attention, memory, and executive control. Acta Psychologica, 129.
Escrito por Rafael Augusto Silva Fernandes Campos